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PAPAI: SENHOR VICISSITUDE E SENHOR NECESSIDADE

PAPAI: SENHOR VICISSITUDE E SENHOR NECESSIDADE

 

 

 

 

 

 

 

 

PAPAI: SENHOR VICISSITUDE E SENHOR NECESSIDADE

 

 

 

Quando a próstata de papai ficou tão grande que empurrou a bexiga e criou um imenso divertículo, e ele, em razão disso, parou de urinar, há cerca de quatro meses, puseram uma sonda nele, pela qual a urina saía; e, no início, ele tinha que despejar o liquido numa vasilha [só depois veio o saquinho plástico].

 

Então ele comprou dois copos de alumínio: um maior, para a urina e outro menor, para a água que ele bebia em abundancia, a vida toda.

 

Ambos os copos têm uma tampinha que veda a entrada, a qual é removível para que se use o vasilhame.

 

Senhor Vicissitude foi o nome que ele deu ao copo da urina; e Senhor Necessidade ao copo da água. Mas quando veio o dreno via saquinho, ele já não precisava mais do Senhor Vicissitude e, por isso, o chamou de Senhor Necessidade, e passou a beber água onde antes ele despejava urina. 

 

Ora, esta historinha singela desses últimos meses, ilustra o modo como papai viveu: pegando vicissitude e transformando-as em boas necessidades. Pegando o copo do xixi e convertendo no copo da água mais pura e fresca.

 

Por isso nada nunca o limitou. Com um ano de idade ficou paralítico e jamais o vi claudicar. Tornou-se atleta de barra, tinha o total manejo do corpo, desenvolveu uma força física imensa, ia onde quer que uma de suas mãos segure; era capaz de tudo: de dirigir sem adaptação [carros, caminhões, trator, qualquer coisa]; entendia tudo de futebol; possuía cultura ampla e diversificada; um português raro e extinto; uma religiosidade do humano, mesmo quando era agnóstico...

 

Isto sem falar que aprendeu a ler apenas aos 8 anos, e até hoje é o dono da maior média geral da história da Faculdade de Direito do Amazonas.

 

Quando umas meninas comentaram que ele era bonitinho, aos 18 anos, mas acrescentaram que era uma pena que ele fosse aleijado como um caranguejo, ele disse: “Mas é que você não sabe como caranguejo pode ser gostoso!”.

 

Somente aos 10 anos, em Copacabana, é que internalizei a percepção emocional de que ele usava muletas para andar. Nunca encontrei um pai que fosse aonde ele ia, e que fizesse o que ele fazia, e que encarasse o que ele peitava.

 

Era um aleijado que não sabia se mostrar como tal; e que caminhava charmoso e suave com a muleta, a tal ponto que, estando ele de paletó, nem sempre ao longe se poderia perceber qualquer gingado diferente em seu balanço e cadencia.

 

Era um arquiteto nato e teve que aceitar fazer Direito, para atingir o que sem paixão atingiu.

 

Tudo a fim de transformar vicissitude em necessidade; pois, estando com dezoito anos, e meu avô doente, foi ele quem teve que abrir mão do sonho de estudar o que naquele tempo só havia fora daqui, e dedicar-se a cuidar do Seringal da família.

 

Embrenhava-se, desde os 18 anos, nos rios longínquos, e passava dias e dias sozinho no meio da floresta, apenas para esperar que fossem resgatar os produtos do Seringal.

 

Enquanto isto lia os clássicos da literatura no meio do mato da Amazônia.

 

Perdeu tudo e saiu do lado de lá herdeiro de todas as coisas em Cristo!

 

Até hoje jamais vi uma conversão com o significado e com a profundidade de fé, entendimento, consciência e visceralidade como a de papai.

 

E me perdoem os devotos de outras crenças. Mas mesmo Paulo teria lições de amor paciente e simples a aprender com papai. Papai jamais escreveria as coisas que Paulo escreveu e depois teve que se desculpar por elas. Não! Ele andava em mansidão e em paciência; e nunca encontrei ninguém mais hombre na seriedade de todas as suas convicções.

 

Escolheu viver pobre e o fez por muitos anos. E eram propostas de todos os lados — do governador, oferecendo a ele uma secretaria para inglês ver, apenas para ele ganhar; até ofertas de empresários que adorariam ter sua consultoria. Ele, porém, jamais aceitou nada.   

 

Como minha mãe disse, papai sempre escolheu o que ninguém queria...

 

Quem conviveu com ele, e com os dons da Graça sobre ele, e, sobretudo, quem provou o amor de Deus nele, esse sabe que o que aqui digo depõe contra a grandeza de atos singelos e que se tornavam sempre maiores do que todos os eventos na vida dele.

 

O paralítico recebeu o dom de curar, de expelir demônios com simples autoridade; e foi aquinhoado com sabedoria e conhecimento; e, antes disso, foi emprenhado na Graça com discernimento de espíritos; de modo que nunca o vi enganado acerca de nada relativo ao Evangelho e ao que não era...

 

E passou por cima de tudo e perdoou a todos!

 

Ah! Não posso narrar aqui quanta brabeza o visitou, quantas traições, quanta decepção, quanta violência, quanta ignomínia, quanta barbaridade, quanta loucura, quanto perversidade, quanta ingratidão; e, até, quanta mentira ele perdoou; a última delas vinda de um pastor que encontrou o Marcelo Quintela do Caminho da Graça, aqui no aeroporto de Manaus, e disse a ele, há cerca de dois anos, que papai estava senil. Que já não dizia coisa com coisa. Nunca reportei a ele essa informação, temendo entristecê-lo, pois a pessoa era um filho na fé. Depois ele ficou sabendo e soube como quem sabe o que não é... Não deu a mínima. Sorriu!...

 

O paralítico botou um guerrilheiro para correr faz cinco anos, cheio do poder da fraqueza. E a não mais do que há 6 meses, aqui em casa, ele botou três assaltantes armados para correrem em pânico, apenas porque se levantou no pode do Espírito de Deus.

 

Ah! Ele passou a vida transformando vicissitude em necessidade e necessidade em alegria, como um copo de água geladinha.

 

O que nos unia era mais do que paternidade e filiação. Nós nos tornamos tudo um para o outro, e nem a distancia mexeu em nada disso.

 

Eu fui amado por aquele homem com a qualidade de amor que o pródigo recebeu do Pai, e também o fui com aquela exultação de um pai que anda em Deus, e que diz: Este é meu filho, e nele tenho muito prazer!

 

Por outro lado, ele foi minha maior fascinação, e o grande amor multiforme que meu ser já provou — pois, como pai eu o amava como o Filho ensinou a amar o Pai; e me sentia um com ele; e sabia que nos amávamos no Sangue e não apenas no sangue.

 

Ontem foi meu último contato mais longo com ele!

 

Hoje cedo, quando informado da falência gradual do coração de tartaruga que ele teve [que agüentou todos os trancos possíveis e jamais perdeu a doçura e a vontade de amar sem medo jamais] — fui para lá sem a certeza das outras vezes; certeza e tranqüilidade de milagres e impossíveis. Hoje eu fui disposto a dizer: “Descanse meu paizinho!”.

 

Sim! Porque sei que ele se agüentou e passou pelo impossível apenas por nossa causa. Ontem, entretanto, senti que ele dizia que estava cansado e que nós não insistíssemos mais... Tanto é que apesar de ele estar bem ontem, eu não preguei os olhos a noite toda, como quem se despedia em gratidão.

 

Assim, quando chegamos à UTI e o Dr. Marcel me disse para falar com ele [ele sempre reagia nessas horas e mostrava isso ultimamente pela elevação dos batimentos cardíacos; pois ele tinha um tubo na traquéia] — meu impulso foi diferente.

 

Ele estava com 40 de freqüência cardíaca e, enquanto eu lhe falava, ela subiu a 68 e chegou a passar de 70. Mas o que eu dizia era diferente dessa vez...

 

“Paizinho, sei que você está cansado e que está lutando apenas por nossa causa, pois, você já passou da morte para a vida em todos os sentidos. Se você estiver cansado, não reaja mais. Nós estamos bem. Tudo o que você ensinou só cresceu em nós. Descanse paizinho. Não se force mais!...”

 

Ele ficou sereno, respirando calmamente, emocionou-se outra vez quando mamãe se despediu dele com todo amor, orando a Deus em adoração grata, e agradecendo a ele por ter sido tão mais que tudo!

 

Então, conforme a Lílian, minha sobrinha, tinha sonhado já três vezes, rodeado pelos seus, lentamente ele foi indo... Como um passarinho... Até zerar.

 

Então, foi também minha vez de transformar o Senhor Vicissitude no Senhor Necessidade. Adriana, que havia sido operada enquanto ele ia..., ligou feliz, me dizendo que tudo lá no Rio tinha sido uma benção, e eu tive que ouvir com a alegria de quem esquece a Vicissitude e abraça a Necessidade. Só depois é que eu disse: “Seu sogrinho já entrou na Glória que ele amava”. E ela desabou...

 

Ontem eu escrevi que tudo às vezes chega de uma só vez.

 

Ora, hoje alegria e dor se casaram, e, na mesma hora em que recebia a notícia maravilhosa de minha mulher, engolia em seco a dor indizível da saudade daquele verdadeiro paipóstolo; pois, apenas quis servir; e, por isso, seus filhos são como um grande pedaço de céu de estrelas na abobada celeste.

 

Agora ele já tomou do Copo do Senhor de todas as Alegrias. E Lukas está com ele!

 

Senhor Vicissitude virou o Copo da Videira Eterna, o Cálice do fruto da Árvore da Vida!

 

Ah! Eu sei que o Senhor está radiante; pois, um de Seus amigos mais chegados lá chegou. Sim! Um amigo de Abraão, um guerreiro com Davi, um arrebatado como Enoque, um paciente como Jó, um fiel como Daniel, um poeta como Isaías, um boiadeiro da Floresta como Amós, um irmão mais maduro de Pedro e um grande amigo de Paulo.

 

“Vem amigo!” — é o que a assembléia dos Primogênitos diz a ele.

 

E ele?

 

Ora, ele é puro e absoluto gozo! Pois, já desde aqui que ele vivia das alegrias da glória que ele conhecera pela fé, e que, há cinco anos, pela via da experiência de um arrebatamento espiritual, ele conheceu e disse: “Não é que não é lícito referir. É lícito. Só é irreferível!”

 

Nós todos estamos em paz; profunda paz; embora todos saibamos que a saudade dele só nos deixará quando com ele encontrarmos outras vez.

 

Dele minha herança é apenas a bengala e a muleta. Tê-las-ei comigo para sempre!

 

Entretanto, ao entrarmos para a sala de cirurgia a primeira vez, dia 6 de agosto, antes de levarem-no, já sendo empurrado na maca, com a gente andando ao lado pelo corredor, de súbito ele parou e me chamou; e disse: “Pegue! Guarde para mim! Você sabe de onde veio!” — e me deu a aliança de 50 anos dele e de mamãe para que eu guardasse. Ora, as alianças foram presentes meu e de Adriana a eles.      

 

A Vida de fé de meu pai é digna de estar em qualquer galeria de gente que amou mais a glória de Deus do que as ilusões deste mundo.

 

Dois copos?

 

Ah! Não! Agora é um só copo e quem o serve é Aquele que disse: “Anseio tomá-lo convosco, outra vez, no reino de meu Pai”.

 

Nele, que o amou e a Si mesmo revelou-se a ele,

 

 

 

Caio Filho

 

14/09/07

Manaus

Am

Dia da Glória de meu pai!

 

 

 

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